O Refúgio Atávico: Por Que o Ouro Brilha na Era dos Bits
Se abrirmos qualquer fórum de fintech ou ouvirmos os profetas da nova economia, a mensagem é unânime e estridente: o futuro é digital, programável e está tokenizado. Os ativos, desde uma pintura a uma fração de um edifício, tornar-se-ão em tokens numa blockchain. A promessa é de uma liquidez sem fronteiras, uma democratização do investimento e uma eficiência que tornará obsoletos os sistemas atuais. Dizem-nos que é um futuro inevitável.
Então, por que razão, no meio deste rugido digital, um pedaço de metal inerte, que não paga dividendos, não gera rendimento e custa dinheiro a armazenar, não para de bater máximos históricos? Por que é que o ouro, o ativo mais antigo e aparentemente anacrónico, se recusa a ceder o protagonismo?
A resposta é simples e profundamente humana: porque a tokenização responde à promessa da eficiência, mas o ouro responde ao grito primal da segurança. E num mundo cada vez mais incerto e volátil, o segundo pesa mais do que o primeiro.
A tokenização é a máxima expressão de confiança em sistemas humanos: no código, na criptografia, na rede descentralizada. Acreditamos num ativo tokenizado porque acreditamos na infalibilidade (ou pelo menos na robustez) do sistema que o suporta. É um ato de fé no progresso.
O ouro, por outro lado, não precisa de fé num sistema. O seu valor é atávico, transcultural e anterior a qualquer software. Não precisa de eletricidade para existir nem de uma ligação à Internet para ser transacionado numa troca de última instância. O seu valor reside numa consensus reality milenar: é escasso, durável e universalmente reconhecido. Na hierarquia de necessidades de um investidor, o ouro cobre a base da pirâmide: a sobrevivência e a preservação do património face a um colapso sistémico.
Não se trata de uma competição, mas de uma complementaridade que revela uma esquizofrenia financeira.
Por um lado, o nosso lado racional e orientado para o futuro abraça a tokenização. É a parte de nós que acredita na globalização, na inovação e num futuro onde as barreiras caem. Compramos um token de um fundo de investimento ou de uma obra de arte porque confiamos que o quadro legal e tecnológico o irá suportar.
Por outro, o nosso cérebro reptiliano, que gere o medo e a incerteza, acumula ouro. É ele que olha para a tensão geopolítica, para os níveis de dívida estratosféricos, para a inflação persistente e para a possibilidade (por mais remota que seja) de um cisne negro tecnológico que deixe os tokens num limbo digital. O ouro é o seguro que se paga a si próprio apenas quando tudo o resto falha.
Os máximos do ouro não são, portanto, uma negação do futuro tokenizado. São o seu contraponto necessário. São o lembrete de que, por mais que avancemos para um mundo de representações digitais, a necessidade de uma âncora física, tangível e indestrutível permanece. É o "por via das dúvidas" mais caro da história.
O verdadeiro futuro não será apenas tokenização.
O verdadeiro futuro dos ativos será híbrido. Já o estamos a ver: existem ETFs de ouro tokenizados onde o metal físico está guardado numa caixa-forte e a sua propriedade é representada através de tokens numa blockchain. Esta é a síntese perfeita: a eficiência e liquidez da tokenização, com a segurança última e tangível do ativo físico.
O ouro bate máximos não apesar da tokenização, mas por causa da mesma incerteza que leva alguns a abraçar a inovação. Enquanto construímos um castelo de cartas digital de complexidade impressionante, é lógico que procuremos um chão firme onde apoiar os pés. Esse chão, por agora, continua a ser de ouro.
A conclusão é que a promessa do futuro não basta para silenciar os fantasmas do passado. E o ouro, na sua permanência silenciosa e impassível, é a prova mais eloquente de que, por mais que nos projectemos no metaverso, a nossa confiança mais profunda ainda reside naquilo que podemos tocar.