Quando os Diplomas Não Salvam da Superstição Económica
Outubro, o Mês da Literacia Financeira. Um período dedicado a iluminar conceitos, a descomplicar siglas e a empoderar os cidadãos para tomadas de decisão conscientes. No entanto, em Portugal, deparamo-nos com uma realidade peculiar e profundamente enraizada: a de que o conhecimento técnico ou académico de elite é perfeitamente compatível com uma pobre literacia financeira pessoal. E o pior, é que esta convive alegremente com mitos e superstições que seriam mais próprios de um conto popular do que de uma carteira de investimentos.
Tropeçamos, com frequência, em engenheiros, médicos ou advogados de craveira – mentes brilhantes nas suas áreas – que, à mesa de café, professam um conjunto de crenças económicas que beiram o irracional. São os últimos redutos de um pensamento mágico que teima em não morrer. Vejamos alguns dos "clássicos" nacionais.
A Desconfiança Cega no Sistema: "Os Bancos São Todos uns Ladrões"
É talvez o pilar central desta mitologia. Uma desconfiança visceral e generalizada no sistema financeiro nacional. Claro que o cepticismo é saudável e a vigilância, necessária. Mas o que vemos vai além disso: é uma crença quase fatalista de que toda e qualquer instituição financeira existe única e exclusivamente para roubar o cliente.
Esta ideia, fruto de memórias históricas e de casos menos bons, impede uma relação produtiva com o sistema. Em vez de se procurar compreender, comparar e escolher o melhor produto para as suas necessidades, o indivíduo fecha-se numa concha de desconfiança total. O resultado? Dinheiro parado numa conta à ordem a ser corroído pela inflação, porque "pôr num depósito a prazo ou num fundo é só dar mais lucro aos bancos". É um tiro no pé, com uma arma carregada pelo próprio.
A Profecia Auto-Realizável: "Seguros de Vida é para Quem se Vai Morrer"
Esta talvez seja uma das pérolas mais reveladoras da nossa aversão ao risco e à previsão. A ideia de que subscrever um seguro de vida é, de alguma forma, atrair o mau-olhado ou antecipar a própria morte é uma superstição poderosa.
O que estes profissionais altamente qualificados não percebem é que o seguro de vida é, antes de mais, um ato de amor e de responsabilidade. É a garantia de que, perante o imprevisível, a família não fica com uma dívida de habitação por pagar ou sem sustento. É a antítese do "deixar andar". É planeamento puro e duro. Reduzi-lo a um presságio funesto é confundir racionalidade com magia.
A Perversão da Precaução: "Seguros de Saúde é para os Que Vão Ficar Doentes"
O mesmo raciocínio distorcido aplica-se aos seguros de saúde. Acredita-se, sinceramente, que só se deve usar um seguro quando se está doente, como se a sua principal função fosse a de um tratamento de última linha.
A verdade é que um seguro de saúde é uma ferramenta de gestão de bem-estar e produtividade. Permite um acesso rápido a consultas, exames e diagnósticos, prevenindo que problemas pequenos se tornem em problemas graves. Para um profissional de alto nível, cujo tempo vale ouro, a capacidade de marcar uma ressonância para a semana sem lista de espera não é um luxo – é um investimento na sua capacidade produtiva. Ver o seguro apenas como uma rede para o pior cenário é ignorar metade do seu valor.
O "Dinheiro Maldito": As Indemnizações são "Mal Abidas"
Outro tabu fascinante é a perceção de que o dinheiro proveniente de uma indemnização (por acidente, doença profissional ou outro sinistro) é de alguma forma "mal havido" ou "sangrento".
Esta ideia assenta na crença de que o dinheiro deve vir exclusivamente do suor do próprio trabalho, e que qualquer outra fonte é menos legítima. O que esta visão ignora é que as indemnizações existem para repor um equilíbrio, para compensar uma perda – seja de saúde, capacidade de trabalho ou qualidade de vida. Não é um prémio, é uma compensação. É o sistema a funcionar como deve ser. Tratá-lo como um dinheiro "maldito" pode levar a más decisões, como gastá-lo rapidamente num bem de luxo, em vez de o integrar num plano financeiro de longo prazo para colmatar a perda sofrida.
O Verdadeiro Desafio da Literacia
O Mês da Literacia Financeira em Portugal não pode ser só sobre explicar o que é uma TANB ou um PPR. O desafio é mais profundo e cultural. É combater o analfabetismo financeiro emocional e supersticioso.
É enfrentar a barreira invisível que separa a inteligência técnica da sabedoria financeira pessoal. Enquanto um engenheiro que projeta uma ponte confia em dados e modelos, o mesmo engenheiro, a gerir as suas poupanças, pode estar a ser guiado pelo medo, pelo orgulho e por lendas urbanas.
A verdadeira literacia começa quando reconhecemos estes fantasmas. Quando percebemos que um seguro é uma ferramenta, não um presságio; que o sistema financeiro, com todos os seus defeitos, é um campo a ser compreendido e navegado, não apenas amaldiçoado; e que o dinheiro de uma indemnização é tão legítimo como um salário, desde que bem gerido.
Até lá, continuaremos a ser um país de doutores e engenheiros que, nas finanças pessoais, ainda acreditam que passar por baixo de uma escada dá mesmo azar. Só que, neste caso, o azar chama-se oportunidades perdidas e um futuro económico mais frágil.
